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domingo, dezembro 10, 2006

Johan Henrik Andresen 

"Johan Henrik Andresen tinha catorze anos quando decidiu fugir de casa dos pais, em Fohr, uma das ilhas Frísias, na Dinamarca. Porque se zangou com a severidade do pai ou por qualquer outra razão. Como quer que tenha sido, reza a lenda familiar que se alistou como grumete no primeiro barco que viu no porto de Fohr e, vários dias depois, deu consigo numa terra estranha, de gente morena cuja língua não entendia. Era o Porto, em Portugal. Perdido e sem recursos, num país estrangeiro, pôs-se a chorar e foi assim que o encontrou um armador da cidade. Este levou-o para sua casa, onde o fugitivo foi acolhido e tratado como um filho, tanto que cinco anos depois já estava estabelecido por conta própria, vindo a tornar-se um dos mais prósperos empresários da cidade, e casando-se com uma portuense, assim dando origem a um ramo materno da minha família – os Andresen do Porto.

Reza ainda a lenda, quando o seu filho primogénito estava para nascer, Johan Henrik escreveu para casa, pedindo o perdão e a bênção paternas. Respondeu-lhe a mãe, dizendo que o pai nunca mais o queria ver nem ouvir falar dele. No entanto, fazia-lhe um pedido: que o seu filho mais velho fosse baptizado com o nome de Johan Henrik e o filho desse também, e assim sucessivamente, conforme era tradição familiar. Desta forma nasceu o ramo português da família e o primeiro de uma linhagem de Joãos Henriques Andresens, que vai já na quinta geração. Ligaram-se ao negócio do vinho, fundaram um vinho do Porto com o nome da família – o Porto Andresen – e o Boavista Football Club, antes que os seus descendentes tivessem degenerado adeptos do menos aristocrático mas mais compensador Futebol Clube do Porto. Foram comerciantes, vinhateiros, armadores, protestantes, caçadores e nostálgicos. Baptizaram gerações de filhos com nome nórdicos, adaptados ao português – Elsa, Gardina, Olga, Teodora, para as mulheres e Gustavo, Guilherme, Thomaz ou o inevitável João Henrique para os homens.

Quando morreu, sem nunca ter voltado a ver as brumas da sua terra, Johan Henrik deixou, por sua vez, um desejo para se cumprir: que o enterrassem onde pudesse ver o mar. A família enterrou-o em Agramonte e o seu desejo foi cumprido até que o “progresso” lhe veio tapar a vista com as construções modernas do Campo Alegre e da Boavista. Avisado, porém, encarregou o mestre Teixeira Lopes de lhe esculpir uma escultura de um barco naufragado, que ficou colocada sobre a sua pedra tumular, em sinal das suas reminiscências vikings e também como símbolo do impossível regresso a casa. Ao menos assim, quem sabe, terá embarcado para a eternidade, tal como os antigos egípcios acreditavam.

Todavia, a dissidência portuguesa não foi a única em que dispersou a estirpe nórdica. Outros Andresen passaram à Alemanha e chamaram-se Hans Heinrich, outros à América Latina, sob o nome de Juan Enrique e outros emigraram para os Estados Unidos, onde foram os John Henry Andresen. Um dia, realizando um trabalho de pesquisa sobre a colonização portuguesa na Amazónia, na época da borracha, fui à Biblioteca Municipal de Manaus consultar jornais da …….. encontrei diante de uma fotografia de um senhor loiro, de barbas, que me pareceu familiar, sem saber explicar porquê. A fotografia encimava uma notícia necrológica e a legenda a que ela dizia respeito rezava assim: “O Sr. João Henrique Andresen, da Associação de Comerciantes de Manaus e um dos fundadores e beneméritos do Teatro Amazonas”. Então, percebi o que havia de extraordinário naquela fotografia: é que ele era igual a mim, quase traço por traço. Lembrei-me do que tinha lido num livro do Corto Maltese: quando encontramos alguém igual a nós, é sinal de morte. A partir dai, e no pouco tempo que tive para pesquisar, procurei descobrir o que podia sobre aquele personagem. Mas não consegui apurar se era um Andresen emigrado directamente da Dinamarca para a Amazónia ou se era o João Henrique I ou II, meus avós do Porto, que forma ambos armadores da carreira, Porto-Lisboa-Belém-Manaus.

Mas a fotografia, essa não enganava: com duas gerações de intervalo e dois continentes a separar-nos, ele era fisicamente igual a mim. E ali estavam, naquele rosto, o meu avô, a minha mãe, os meus tios. Os mesmos olhos claros que, não fosse a fotografia a preto e branco, seriam azuis – ou cinzentos ou verdes, conforme a luz que vem do mar – e o mesmo olhar, que é uma marca da família e que tão depressa está preso ao mundo, às conversas e aos outros, como de repente se ausenta, a meio de uma conversa, como quem regressa a casa. A mesma, insondável e incompreensível, nostalgia boreal, essa saudade do norte em pleno sul, esse absurdo desejo de neblina no esplendor da luz – mesmo em Manaus.

Alguns de nós, Andresen, nascemos com veia de contadores de histórias. Eu também cultivo o género – umas vezes por profissão, outras por distracção. A noite passada, tendo de improvisar uma história para adormecer o meu filho mais pequeno, lembrei-me de lhe contar esta. Acrescentei a lenda, com tempestades no Golfo da Biscaia, dramas na Ribeira e romances no Douro. Deliberadamente, para que ele, por sua vez, acrescente outras lendas, mais tarde. Pensando bem, acho que essa é uma das funções da família: que cada geração imortalize as anteriores. Não sendo assim, só nos resta a previsibilidade destes tempos sem antepassados escondidos em porões de navios, pais ausentes que enviam ordens severas sob as quais esconde a fraqueza dos sentimentos e avós que fundam teatros barrocos na Amazónia.

(ao meu tio Gustavo Andresen, o guardião destas coisas)"